Material inadequado de Ciências chegará aos alunos da EJA


Material inadequado de Ciências chegará aos alunos da EJA

Equipe de Ciências Naturais da Prefeitura de São Paulo ignora a Covid-19 em material para o ensino remoto

Caio Faiad
May 6 · 7 min read
Os Cadernos Trilhas de Aprendizagens chegarão impressos às casas dos estudantes via Correios.

As Secretarias Municipais de Educação (SME), de todo o país, estão se organizando para atender os alunos que tiveram suas aulas interrompidas por conta da pandemia da Covid-19. Por meio de sua SME, a Prefeitura de São Paulo produziu os cadernos Trilhas de Aprendizagens que chegarão impressos às casas dos estudantes, mas que já estão disponíveis no site para download.

Dentre os alunos atendidos, estão os da modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA) que são aqueles/as que não tiveram acesso e/ou não concluíram o Ensino Fundamental e Médio em idade apropriada. Em vídeo, a Carta para estudantes da EJA — DIEJA diz que

[1:25 do vídeo] a equipe pedagógica da Secretaria Municipal de Educação selecionou algumas atividades que poderão ser realizadas em casa de forma autônoma ou com a ajuda de um familiar no período de quarentena até que tudo se restabeleça e as aulas voltem ao normal.

https://www.youtube.com/watch?v=RJ53CUoyiVc&feature=youtu.be

Na apresentação do caderno Trilhas de Aprendizagens — EJA II, em mensagem assinada por Bruno Caetano, Secretário Municipal de Educação de São Paulo, a ideia de que os alunos do EJA irão conseguir fazer as atividades de forma autônoma é reforçada

Trata-se de atividades que você poderá fazer sozinho ou contando com a ajuda de um dos seus amigos ou familiares.

Mas será que esse material cumpre o que promete?

Análise do material de Ciências Naturais

No módulo III, as áreas de Linguagens e Códigos e Matemática, de modo acertado, decidem abordar a temática mais urgente no momento: a pandemia Covid-19. Contudo, causa estranheza o tema do Covid-19 ser ignorado nas áreas da Ciências Naturais. O tema escolhido foi Alimentação Saudável.

Os materiais preparados para serem auto-instrucionais costumam vir com aula-texto. Porém, este não é o caso do Trilhas de Aprendizagens que é composto por textos jornalísticos seguido de questões para serem respondidas pelos alunos.

O material começa com o texto “O que eu ganho ao escolher a alimentação saudável?” extraído de um site governamental. Atente-se a questão 3 (página 34):

Para a resolução desse exercício, não é apresentado ao aluno um valor referencial do parâmetro quantidade de açúcar para que ele possa responder se tal o alimento é saudável. A ausência de um valor referencial para que o aluno interprete se a quantidade de açúcar nos alimentos é excessiva para o organismo humano faz com que o aluno resolva a questão baseada em critérios subjetivos.

Recorrer única e exclusivamente a critérios subjetivos para a resolução de um problema no material de Ciências Naturais é um problema. E dos grandes! O questionamento sobre qual conhecimento científico os alunos aprenderiam com a resolução desse exercício fica em aberto.

Na busca de critérios próprios, e portanto, subjetivos para a resolução da questão, o aluno pode tentar comparar os itens, mesmo que essa não seja a orientação do enunciado. E aí temos outro problema a ser apontado. Note que a partir dos enunciados, no item a, a quantidade de açúcar é medida em colheres de chá, no item b em colheres de sopa e no item c em colheres de sobremesa.

Tipos de colheres
Tipos de colheres

Conforme a imagem ao lado, uma colher de sopa é o dobro do tamanho da colher de chá. Já a colher de sobremesa possui tamanho intermediário. Analise novamente as ilustrações do exercício e veja que a mesma representação de colher foi utilizada para os diferentes tamanhos. Elaborado para ser guiado por critérios subjetivos, o exercício pode induzir o aluno a inferir que uma lata de refrigerante possui mais que o dobro de açúcar das três biscoitos recheados. Sendo que, a partir dos dados apresentados, as quantidades de açúcar nessas duas quantidades de alimentos são muito próximas.

Agora, observe a questão 4 (p. 35):

Atente-se ao fato de que o termo “alimentos ultraprocessados” estar em negrito no enunciado, assim como, outros termos nas assertivas que seguem. Tal formatação induz o aluno a correlacionar os termos em negrito como alimento ultraprocessado. Assim sendo, de que forma o aluno deve responder a assertiva “O suco de caixinha é mais saudável que o refrigerante”, já que o enunciado indica que tanto o suco de caixinha quanto o refrigerante sejam alimentos ultraprocessados?

Se assim considerado, um provável caminho de resolução seria pela comparação das quantidades de gorduras, açúcares e sódio descritas nos rótulos desses alimentos. Contudo, o material não apresenta nenhum rótulos para se estabelecer a comparação. O aluno novamente precisa incorporar única e exclusivamente conhecimentos de sua vivência.

Com isso, essa questão que pede para o aluno responder verdadeiro ou falso em assertivas como “O suco de caixinha é mais saudável que o refrigerante” ou “Posso substituir um prato de arroz e feijão por macarrão instantâneo”, não produz e nem mobiliza conhecimento científico para resolução da questão. Bastaria assistir o programa da Ana Maria Braga para respondê-la. Onde está o conhecimento científico em um material que julga ser trilhas de aprendizagens em Ciências Naturais?

Para finalizar análise do Módulo III, das escassas 8 páginas de Ciências Naturais, duas delas (p. 39 e 40) são dedicadas à caça-palavras. Agora imagina a situação: enquanto o aluno do EJA recebe no whatsapp uma mensagem dizendo para não usar máscaras fabricadas na China por virem de lá infectadas com o novo coronavírus, esse mesmo aluno “estuda” ciências procurando a palavra VITAMINAS no material elaborado pela prefeitura da cidade mais atingida pela Covid-19.

No módulo IV, mesmo que de forma superficial, o tema da saúde pública é abordado. A partir do texto “8,7 milhões de idosos já foram vacinados contra a gripe no país” é possível discutir o porquê de se vacinar contra a gripe durante a pandemia do novo coronavírus.

Contudo, uma questão desse módulo (p. 72) foi um tanto quanto mal elaborada. Veja:

Observe que a única pessoa que possui sintomas de coronavírus é a senhora de 75 anos, chamada Amanda (item b). Por qual motivo foi adicionado a idade das personagens em um exercício que visa identificar a doença a partir de seus sintomas? Seria a idade um sintoma da Covid-19?

Sabemos que não!! Embora não constem no grupo de risco nem encabecem as estatísticas sobre o número de mortos por coronavírus, pessoas com menos de 60 anos são as mais infectadas pela doença no Brasil. Com isso, vemos no material Trilhas de Aprendizagens a propagação de uma concepção errada sobre a Covid-19. O que pode impactar socialmente na defesa de medidas como a do isolamento vertical e a não percepção de que os mais jovens tem contribuído para a sobrecarga do sistema de saúde.

EJA não pode ser colocada de escanteio

Conforme se observa em alguns exemplos do tema Alimentação Saudável, é questionável a informação propagada pela SME de que os alunos conseguirão resolver as atividades propostas no Trilhas de Aprendizagens de forma autônoma. A falta de informações nos enunciados irá produzir dúvidas nos estudantes que não terão como entrar em contato com os professores ou realizar pesquisas na internet, visto que, quase 40% dos alunos da rede municipal de ensino da capital paulista não tem acesso à internet em casa.

Historicamente, os alunos da EJA são os frutos da enorme desigualdade social que fundamenta este país. Por motivos econômicos, muitas dessas pessoas foram obrigadas a interromper seus estudos. O deficit educacional que o Brasil possui com essa parcela da população é reconhecida e, por isso, no Plano Nacional de Educação (PNE), a EJA aparece em duas das vinte metas estabelecidas. Contudo, dados do MEC de 2018 já apontam que dificilmente iremos alcançar todas metas estabelecidas pela Lei 13.005/2014.

Basta lecionar nas escolas públicas que ofertam a EJA para identificar que essa modalidade incorpora, em sua grande maioria, pessoas pobres, pretas e periféricas. Sabemos também que um dos alvos dos criadores das chamadas fake news são aquelas pessoas que possuem baixa instrução educacional.

Dessa forma, julgo como irresponsável a decisão da SME de praticamente ignorar as questões relacionadas à Covid-19 no material de Ciências Naturais. Tal abordagem poderia não só mobilizar diversos conceitos científicos básicos, mas também ajudar na conscientização de alunado mais pobre, que hoje são os mais atingidos pelas mortes por Covid-19 como pode ser visto aquiaqui e aqui.

A ironia do destino é que nas diversas formações que se promovem aos professores, é recorrente a ideia de trazer a realidade do aluno para a aula. Mas na hora da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo executar aquilo que prega, vemos toda a teoria pedagógica ir pelo ralo. Já dizia o ditado: faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço.

Boletim Antidoto

O gabinete do antiódio

Caio Faiad

WRITTEN BY

Bacharel e Licenciado em Química e em Letras. Doutorando em Ensino de Ciências. Editor da BALBÚRDIA — Revista de Divulgação Científica dos Discentes do PIEC-USP

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A ANTÍDOTO é um boletim digital que busca compilar textos com reflexões críticas sobre a situação atual do país e dessa forma atuar como antídoto contra o ódio gerado pelo governo fascista brasileiro.


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