Em tempos de Pandemia, quais caminhos devemos trilhar?



Coletivo Infâncias de Santo Amaro e região

Trilhas da Aprendizagem.
Em tempos de Pandemia, quais caminhos devemos trilhar?


“A travessia perde seu destino porque não tem metas, não é finalidade.
É duração da continuidade.” Skliar

Trilhas de aprendizagem. Esse é o nome dado ao material virtual e impresso disponibilizado para as famílias que tem seus bebês e crianças matriculados na rede municipal de ensino da cidade de São Paulo. Trilha, no dicionário, pode significar “caminho rudimentar, ger. estreito e tortuoso”. Já trilhar, no sentido figurado, indica “guiar-se por; seguir”.
Educar ou educar-se tem mesmo muito de caminho tortuoso, não é linear e revela complexidade. Há muito tempo sabemos que a educação e o conhecimento se efetivam pela experiência. É muito mais pela travessia do que pelo caminho determinado a seguir. É o processo e não o meio, o que realmente importa. Nós, educadores/as, somos mediadores/as e participantes dessa travessia, compartilhando a autoria desse caminho com bebês, crianças e famílias. Nesse sentido, não há trilha pré-concebida, formada por passos, ou atividades a serem realizadas, mas há, sobretudo caminho construído coletivamente, compartilhado e intimamente ligado aos contextos de vida e singularidades de seus autores.
A experiência que nesse momento nos atravessa e nos traz instabilidade e desafios, é a pandemia do COVID-19 e o consequente distanciamento social que nos impossibilita cumprir integralmente nossas funções profissionais e pessoais nos espaços públicos como sempre fizemos, interagindo, convivendo e construindo o bem comum.
Em tempos de normalidade, a construção coletiva da aprendizagem, da convivência e do bem comum se dá pela relação diária, pela comida que se compartilha, pelo corpo em movimento, pelo cuidado, pela conversa, pela investigação, pesquisa, exploração dos espaços, pelos conflitos e principalmente pelo diálogo.
Ainda que se considere a necessidade e pertinência de manutenção do contato e vínculos entre as unidades educativas, famílias, bebês e crianças, imaginar que se possa fazer isso por meio de um guia em forma de apostila nos parece simplista e irreal. Chegamos a duvidar que algum educador responsável pela referida produção acredite verdadeiramente nisso, uma vez que o material encaminhado às famílias revela muitas concepções contraditórias em relação aos documentos que na atualidade balizam as orientações pedagógicas da rede de Educação Infantil paulistana.
Mesmo uma família que esteja bem acomodada em uma casa, em que os familiares sejam letrados e que acompanhem as atividades escolares passa por dificuldades nesse período excepcional que vivemos. Nesse sentido, basta ouvir os relatos de educadoras/es e famílias que de repente viram suas vidas e rotinas desestabilizadas. Uma apostila feita às pressas não contribui para resolver os problemas vividos e pode se tornar fonte de mais angústias, tensões e frustrações. Além disso, escamoteia os temas mais urgentes no momento que a nosso ver seriam a luta intransigente e incessante pela vida, a segurança alimentar e o bem estar psíquico de todos, a começar pelos bebês e crianças.
As sugestões educativas, os vídeos produzidos, as postagens realizadas pelas educadoras e pelos educadores nas redes sociais a partir de seus próprios recursos, com muita boa vontade mas pouco ou nenhum apoio e orientação por parte dos órgãos centrais revelam que mais do que apostila o que precisamos é de diálogo, escuta, criação de redes, participação, incentivo à autoria, protagonismo, sensibilidade e bom senso. É isso o que tem ocorrido nas unidades educativas. Na contramão do modelo atual que emana das entrevistas concedidas aos jornalistas e dos boletins sem fundamento legal que chegam em nossas caixas de mensagem, temos visto em nossas comunidades escolares, xs profissionais da educação estabelecer relações horizontais, realizar inúmeras reuniões virtuais, interagir incessantemente e se esforçado na perspectiva de “fazer desse limão, limonadas”.
Somos uma cidade e uma sociedade educadora. Como diz o sábio provérbio africano, é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança. Não é preciso produzir cartilha. Basta estar vivo, cuidar dx outrx, dialogar, abrir-se ao mundo para que as aprendizagens ocorram.
Na condição de educadorxs da infância, acreditamos que este momento de “comunicação remota” poderia ser construído de outra maneira. Aliás, considerando que a crise sanitária, pode se estender por mais alguns meses, ainda é possível que seja diferente. Para isso, as premissas precisam ser outras e devem começar pela escuta verdadeira, a interlocução constante e o respeito pelx outrx, que deve ser maior que o argumento de autoridade burocrática baseado na hierarquia.
É preciso lembrar novamente que educação se faz por meio da interação, da escuta e do diálogo, elementos que vem sendo desconsiderados nesse processo. Os/as educadores/as da rede não foram convidados a refletir, construir e produzir propostas, ficaram sabendo das propostas junto com a população por meio dos meios de comunicação.
Muito mais do que reproduzir e complementar um “Guia-trilha”, o que nos cabe enquanto servidores deste município é pensar estratégias de novos processos educativos, condizentes com os desafios e dificuldades impostas pela crise sanitária, sem abrir mão das concepções que balizam o trabalho educativo com bêbes e crianças. Esse movimento seria muito mais interessante e proveitoso se realizado em perspectiva inter setorial. Não faz sentido que o diálogo entre unidades educativas e famílias/educandxs num momento como esse não tenha o apoio de outras políticas públicas como saúde, cultura, assistência social, esporte e outras.
Considerando a perspectiva da educação integral, que considera a integralidade de seus sujeitos, conforme explicitadas nos diferentes documentos da SME,  entendemos que em vez de uma apostila padronizada e limitadora das experiências, deveria estar batendo à casa das famílias que compõem a nossa comunidade as necessárias cestas básicas, produtos de feira, água limpa e abundante, livros de literatura infantil, kits de higiene, massinha, giz de cera, papel, palitos, tintas, materiais não estruturados, apoio psico-social e o que mais fossemos capazes de criar e oferecer. Nesse sentido, cabe lembrar que sequer o material com entrega prevista para janeiro de 2020, garantindo as condições mínimas para o início do ano letivo, chegou para boa parte das crianças matriculadas.
Na educação Infantil, o processo de aprendizagem tem como uma de suas principais referências o contexto em que a criança está inserida. Sendo assim, parecem equivocadas as propostas homogeneizadoras que estejam descontextualizadas dos interesses, espaços e momentos vividos pela criança. Nesse momento, bebês e crianças vivem integralmente em suas moradias, suas aprendizagens precisam estar voltadas para as interações, para o autocuidado e descoberta de si, autonomia e independência em ações/tarefas domésticas, de cuidado do outro, de pertencimento, dos sons, cheiros, gostos, faltas, medos, angústias, anseios que vivem no lugar habitado.
Ao analisar o caderno “Trilhas da Aprendizagem”, suas propostas e concepções alguns questionamentos se fazem necessários. Acreditamos ser essa uma contribuição aos seus/suas formuladores/as. É nesse movimento dialógico, crítico e colaborativo que avançamos e não na imposição unilateral e no silenciamento das divergências como tem ocorrido. Vejamos alguns exemplos:
·         Os problemas começam já na introdução trazida na página 21 do caderno para 4 e 5 anos que faz referência aos conceitos “estudante”, “rotina de estudo” “tarefas escolares” e reconhece a possibilidade de que “o estudante demonstre cansaço”. O texto parece desconsiderar que na educação infantil esses termos não fazem sentido e vão na contramão do que é preconizado há anos por educadores/as e materiais da infância produzidos pela própria Secretaria Municipal de Educação.

·         Estivéssemos com as escolas mobilizadas para realizar um grande mutirão de solidariedade e seria mais provável que xs familiares se alegrassem ao observar a foto que compõe o material de 0 a 3 anos, na página 10 e seria mais coerente a conversa sobre alimentação ou ainda a proposta de massinha caseira e receita culinária das páginas 24 e 26 (Trilhas 0-3). Talvez assim, fosse menos irreal e frustrante pensar no sugerido local de descanso ou nas brincadeiras com água e sabão. A falta de alimento é uma realidade de muitas famílias. Receitas com ingredientes caros e pouco presentes na mesa da maior parte das famílias, como chocolate meio amargo, creme de leite, granulado propostas nas página 38  (trilhas 4 e 5), evidenciam o grau de inadequação entre o proposto e a realidade da vida atual da maior parte das famílias.

·         É possível para as crianças que se amontoam em 35 em uma mesma sala, lembrarem, em abril, após 30 dias de isolamento, o nome de todos os seus amigos como se sugere na página 24? ((Trilhas 0-3)

·         “As crianças pequenas necessitam brincar em espaços abertos com elementos da natureza como barro, areia, folhas, entre outros.” (Trilhas 0-3 p. 38) Em período de isolamento quais seriam esses espaços de brincar? Nas casas? Quais casas possuem na atualidade e na realidade periférica da cidade tais elementos? Sabemos que eles são raros, nas residências e inclusive em muitos CEIs e EMEIs.

·         Qual a autonomia das crianças pequenas na realização de um kirigami? O que devem aprender? Qual o sentido ou direito ali garantido? Quando se afirma que através dessa atividade a criança desenvolve “a coordenação motora fina e a força no polegar e no indicador”, qual a concepção de crianças e educação infantil, está sendo explicitada?

·         Os brinquedos sugeridos na página 36 (Trilhas 0-3), por exemplo, exigem maior participação do adulto ou da criança? É importante destacar que essas propostas sugerem atividades que o próprio Currículo da Cidade (2019) não recomenda mais. Quando a brincadeira é pensada na perspectiva da criança e em seu protagonismo, não há grande necessidade de dividir proposta por faixa etária. A criança constrói, ressignifica e brinca de acordo com o que ela é naquele momento.

·         Na página 38 (Trilhas 0-3), o caderno indica o portal “tempojunto.com”, o referido site tem fins lucrativos e possui uma loja virtual e faz indicações de presentes para algumas “datas comemorativas”. Seria um incentivo da SME para que as famílias façam compras virtuais nesse espaço? Não haveria uma indicação e promoção de empresa sem que tenha ocorrido licitação ou qualquer outro certame em total desacordo com a legislação? Soma-se a essa questão a contradição sobre o debate em relação as datas comemorativas já explicitado no Currículo da cidade e no dialogo com as famílias.

·         Nas páginas 38 (Trilhas 0-3) e 59-60 (Trilhas 4-5), onde há dicas de plataformas digitais, não há nenhuma problematização e alerta às famílias sobre o bom uso das “telas”, mídias e equipamentos eletrônicos para bebês e crianças bem pequenas.

·         Por sua vez, o rol de “Brincadeiras bem legais” da página 04 do Guia às famílias, propõe muitas brincadeiras coletivas que necessitam de grandes espaços, sem considerar alternativas para crianças que não os possuem, o que pode frustrar ainda mais as famílias que já encontram-se em meio a tantas faltas.

·         A inclusão logo no inicio do caderno das “Orientações às famílias dos estudantes das redes estadual e municipal de São Paulo” traz orientações para os anos iniciais do ensino fundamental com ênfase ao processo de alfabetização. Educadores e educadoras da infância sabem o quanto o tema da alfabetização e da introdução ao letramento causam polêmica e tensões na educação infantil. Nesse sentido, a inclusão desse material no caderno destinado às crianças de 4 e 5 anos presta um desserviço, causa confusão e gerará tensionamentos desnecessários para esse momento. Além disso, a reprodução de material produzido e distribuído pela rede estadual soa como abdicação de autonomia e propaganda política, atitudes descabidas e irrelevantes nessa conjuntura.

·         Em seu conjunto, as orientações às famílias poderiam cumprir papel estratégico e ser bem mais significativas se trouxessem apoio emocional, conscientização e principalmente orientações práticas quanto à garantia dos direitos de crianças e adultxs e sugestões de geração de trabalho e renda nesse momento de grave crise social, econômica e sanitária.

O exposto acima, contem apenas alguns exemplos, pautados em uma breve análise crítica é revelador dos tortuosos caminhos dessa “trilha”.
É preciso refletir quais sentimentos o material causará nas famílias, quando as mesmas se depararem com propostas que não podem/conseguem realizar com seus bebês e crianças. Frustação? Inadequação? Angustia? Ansiedade? Nesse momento histórico esses são os sentimentos que gostaríamos de proporcionar às famílias? Esse material contribui para fortalecer o vínculo entre as unidades e as famílias? Acreditemos que não.
Um “projeto educativo” pensado para este momento, ao invés de um material impresso, poderia ser ampliado, expandir, ganhar novos contornos com a parceria da secretaria de saúde (psicólogos que não estão na linha de frente no combate a COVID 19), assistência social, esporte e cultura. Quantos esportistas e artistas, dispostos a trabalhar, poderiam compor a elaboração deste guia, que desconsidera em muitas frentes essas áreas do conhecimento?
Em vez de gastar importantes recursos financeiros públicos (e não governamentais, é sempre bom lembrar) com a elaboração, impressão e postagem de material que pode ser pouco significativo não seria mais produtivo destinar esse recurso para arte-educadores e outrxs profissionais que nesse momento passam por muitas dificuldades? Não poderiam esses profissionais ser mobilizados pela Prefeitura para que realizassem produções artísticas, culturais, esportivas, articuladas às diferentes realidades de vida, produções que subsidiassem as unidades escolares e que pudessem ser socializadas com as famílias?
Precisamos reiterar nosso compromisso com a função pública, parte de nós poderia ainda, pensar a defesa da vida e da educação sob outra ótica igualmente importante: o retorno aos encontros presenciais. Debruçados sobre esta preocupação, poderíamos ter um trabalho de estudo, pesquisa, levantamento e ações bem mais afetivo para aquele momento em que nossa cidade mais precisará de nós. Nesta perspectiva, não seria cabível então pensarmos em melhorar as estruturas precárias de muitas unidades, reorganização de demandas e diminuição de estudantes por sala (dadas as regras de distanciamento social) condições de oferta de um trabalho de qualidade, revisitar, replanejar e trabalhar em cima dos quadros de demandas oriundos dos Indicadores de Qualidade? Estreitar mais as relações entre as diversas divisões da Educação Infantil muitas vezes afastadas pela estrutura burocrática?
Nesse caso, seria possível que algum/a burocrata mais afastado do cotidiano escolar levantasse uma questão: “E as professoras o que farão? Vão receber sem fazer nada? Como fiscalizar e controlar a produção?”. Acreditamos que essa alegoria, que parece absurda não deve existir para além da imaginação criativa e que nenhuma ação educacional em nossa cidade tenha sido elaborada com o viés da fiscalização e a desconfiança quanto ao comprometimento de todos os profissionais da educação e aos vínculos com as respectivas comunidades escolares. Vínculos esses pautados no dialogo sempre presente e não na indicação de “atividades”. No entanto, não custa lembrar que desde o início da Pandemia da COVID-19 (e antes também), educadores e educadoras tem trabalho com afinco para  acolher, orientar, educar com qualidade social, tendo bebês e crianças como foco principal.
Nesse momento, sentimos falta de propostas formativas por parte da Gestão Municipal, ciclos de formação sobre a atual crise, suas origens, consequências, impactos na educação, etc. Podemos estar perdendo um tempo precioso de formação continuada e fortalecimento da rede municipal de ensino.
A Pandemia não pode servir de desculpa e pretexto para que as informações e decisões cheguem ao nosso conhecimento em forma de “comunicado a ser cumprido”, esse formato de gestão pública não combina com a gestão democrática da educação, previstas na CF-88, na LDB, nos Planos Nacional e Municipal de educação e demais legislações.
Reafirmamos, não há EAD na Educação Infantil. Muito mais que indicar trilhas pré-estabelecidas, faz se importante construir caminhos a partir de diálogos coletivos, análises de realidade e o compromisso de pensar no que é mais adequado para os bebês, crianças e famílias.
Lamentamos pela falta de diálogo e pelas decisões unilaterais que levam a maioria a fazer o que não acreditam, o que sabem não ser o desejado nesse momento pelas famílias e crianças com xs quais convivemos há anos.
Deveríamos estar com nossas unidades e educadores/as mobilizadas em favor de um grande mutirão de solidariedade, em defesa da vida e da sobrevivência social de todxs, em parceria com organizações sociais, igrejas, movimentos sociais e todas as pessoas de boa vontade. Em lugar da “neurose conteudista”, poderíamos estar tecendo uma rede muito maior para esta tortuosa travessia, porque
Uma rede de olhar
Mantém o mundo unido
Não o deixa cair
Roberto Juarez, Poésia Vertical
Ainda é tempo. Esperamos que o vírus que tem levado dor, pânico e morte para todo canto não seja capaz de matar nossa capacidade de dialogar, construir saídas coletivas, superar os desafios com os quais nos deparamos e semear esperanças. As futuras gerações aguardam ansiosas as decisões que tomaremos e as trilhas que abriremos para fazer essa difícil travessia.

Texto coletivo escrito pelo Coletivo Infâncias de Santo Amaro e região em abril de 2020



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